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Uma revolução muito tranqüila

Os uruguaios, ao contrário da maior parte dos latino-americanos, não fazem da crítica ao Estado um divertimento.

Em 1993, quando os governos de toda a América Latina estavam dispensando trabalhadores e vendendo empresas estatais em ritmo acelerado, o Uruguai realizou um plebiscito para determinar, em essência, se o país devia acompanhar a tendência. Um total de 70% de todos os uruguaios disse “Não”. Esse voto histórico é freqüentemente invocado pelos uruguaios para ilustrar o que descrevem como uma atitude nacional única no gênero em relação ao setor público.

Há bons motivos para essa atitude. Os uruguaios desfrutam de um dos mais altos padrões de vida fora do mundo industrializado e muitos deles acreditam que o Estado previdenciário é o principal motivo. “A sociedade uruguaia é profundamente ‘estadista’”, diz Eduardo Cobas, que dirige a Comissão Executiva para a Reforma do Estado do governo uruguaio. “Os uruguaios acreditam no Estado e acreditam que este pode fazer bem as coisas.”

No entanto, ao conversar com Héctor Morales, alto funcionário da Federação dos Sindicatos Uruguaios, que representa os trabalhadores do governo, fica claro que as coisas não vão de todo bem no setor público. Numa avaliação surpreendentemente franca, Morales deixa claro que, apesar de suas realizações, o Estado uruguaio se defronta com desafios semelhantes aos dos outros países latino-americanos. “Reconhecemos, há anos, que o Estado uruguaio precisa ser reformado e modernizado”, disse Morales numa entrevista na sede da federação, em Montevidéu. “Durante décadas, os servidores públicos foram contratados por meio do mecanismo de clientelismo político”, explica. “Se eu trabalhasse para um determinado partido político e o ajudasse a conquistar um certo número de votos, faria jus a um emprego do governo.” Morales afirma que essa situação transgredia a constituição do Uruguai, que dispõe que todos os cargos públicos sejam preenchidos mediante concursos abertos, que recompensem o mérito — e não a influência política. E também estimulava a criação de novos órgãos e repartições públicas, com pouca atenção para os custos e benefícios de práticas semelhantes.

Como a constituição do Uruguai dificulta ao máximo a demissão de um servidor público, o Estado tendia a crescer em termos relativos, a cada novo governo, até que se tornou “desproporcionalmente grande”, segundo Morales. Hoje, cerca de 230.000 uruguaios, ou um de cada quatro em idade de trabalhar, tem um emprego do governo — um dos mais altos índices do mundo. A distribuição dos funcionários do governo, porém, é distorcida. De acordo com Morales, os serviços militar e diplomático são, em proporção, muito maiores no Uruguai do que em muitos países industrializados, mas não existem nem delegados de polícia nem enfermeiras da saúde pública em números suficientes.

Por ironia, embora os salários do setor público para trabalhos de baixa qualificação sejam razoáveis, são extremamente baixos para os de nível administrativo para cima. A diferença entre os salários públicos e privados para os profissionais altamente qualificados é tão grande que, para poder preservá-los, a maior parte dos ministérios permite que trabalhem apenas uma parte do dia, a fim de que possam complementar sua renda com um segundo emprego no setor privado. O treinamento dos funcionários é inadequado, segundo Morales, e o investimento em tecnologia de informação fica muito aquém do setor privado. Como resultado, diz ele, inúmeras transações oficiais levam muito mais tempo do que deveriam e o serviço ao cliente tende a ser inferior ao encontrado no setor privado.

Morales é mordaz a respeito dos cargos superiores da administração. “Em 99% dos casos, os administradores e diretores das instituições públicas não possuem uma compreensão clara da área para cuja chefia foram designados”, afirma. Em vez de preencher cargos da administração com servidores públicos que dedicaram anos de experiência a um setor determinado, tradicionalmente o sistema dá essas colocações como prêmios de consolação a “candidatos políticos malsucedidos”, sejam quais forem suas qualificações, diz ele.

Mal remunerados, mal treinados e ignorados pelos chefes, muitos servidores públicos se sentem acuados, segundo Morales. Eles desconfiam de qualquer político que possa pôr em risco sua já precária situação, em nome da modernização ou reforma.

Que espécie de reforma? A análise que Morales faz do setor público é repetida por executivos do setor privado uruguaio, representantes governamentais, intelectuais e jornalistas. Mesmo orgulhosos das realizações do Uruguai, esses observadores se preocupam com o fato de que a ineficiência do setor público esteja atrasando o país e prejudicando sua aptidão de competir. Gualberto Rocco, presidente da Associação das Indústrias do Uruguai, disse que os homens de negócios uruguaios fizeram enormes esforços para reduzir os custos e aumentar a produtividade na década de 1990, quando o governo derrubou muitas barreiras comerciais para se integrar à união aduaneira do Mercosul. Mas, segundo ele, o Estado não fez um esforço proporcional para diminuir o ônus burocrático dos negócios em andamento\ apesar de algumas notáveis melhorias em setores como o da alfândega, portos e telecomunicações. “Em vez de manter um dos nossos funcionários dois dias na rua para completar uma única tramitação oficial, precisamos poder concluí-la em duas horas”, disse Rocco. “Isto encarece os nossos produtos.”

Se os representantes do sindicato dos funcionários públicos e os dirigentes da indústria concordam sobre a necessidade de reforma, o que impede que esses problemas sejam resolvidos? Segundo Juan Manuel Rodríguez, especialista em relações de trabalho e professor de administração da Universidade Católica do Uruguai, tudo se resume em empregos. Qualquer esforço sério para modernizar e racionalizar o setor público requereria dispensas, segundo Rodriguez, e, num país em que quase todo o mundo tem um parente que trabalha para o governo, essa perspectiva é assustadora para muitas pessoas. “Os servidores públicos têm muito poucos incentivos , mas têm realmente um incentivo para não perder o emprego”, disse ele. Na verdade, os levantamentos de opinião pública conduzidos pelo governo uruguaio em 1995 descobriram que as pessoas apoiavam a reforma do setor público — mas desde que não resultasse em dispensas e conflito social.

Assim, em 1995, quando pretendeu modernizar o setor público, o recém-instalado governo de Julio María Sanguinetti optou por uma solução de duas etapas, que desse ênfase aos incentivos e à participação voluntária, em vez de eliminar empregos. Em resumo, o governo convidou os órgãos executores dentro dos principais serviços administrativos do Uruguai a proceder a uma avaliação do que estavam fazendo. A cada órgão participante se solicitou que definisse suas “atribuições essenciais” ou os serviços que executava de maneira exclusiva e insubstituível. Os órgãos também foram solicitados a descobrir as atividades que podiam ser eliminadas, transferidas para outros órgãos mais qualificados ou contratadas fora, junto a empresas particulares. Uma vez definidas as atividades essenciais, cada órgão identificaria os cargos desnecessários e a “reestruturação” total seria submetida à aprovação dos especialistas da Comissão Executiva para a Reforma do Estado (conhecida como CEPRE). O programa inteiro foi financiado com um empréstimo de US$115 milhões do BID.

Vamos fazer um trato. Aos órgãos que tiveram sua proposta de reestruturação aceita ofereceu-se uma espécie de recompensa única. Primeiramente, passaram a ter acesso a recursos especiais para cobrir o desligamento, a aposentadoria antecipada ou os custos de transferência de funcionários considerados em posições redundantes. Esses recursos incluíam também apoio técnico, treinamento para a atividade comercial e pequenos empréstimos para os servidores públicos que optassem por iniciar seus próprios negócios no setor privado. Mais importante ainda, permitiu-se que cada órgão conservasse as economias geradas pela reestruturação. Essas economias podiam, então, ser usadas para aumentar os salários da equipe remanescente, investir em treinamento e equipamento, e pagar gratificações com base no desempenho — coisas que, no passado, eram quase todas impossíveis de se fazer.

Os resultados foram notáveis. De um total de 108 órgãos executores que participaram do programa, 82 (que representavam 80.000 funcionários públicos) reestruturaram suas operações com êxito. Em muitos casos, isso implicou eliminar ou incorporar os órgãos sobrepostos, de modo que, ao término do processo, havia 46% órgãos menos do que antes. Durante a reestruturação, identificou-se um total de 9.221 cargos redundantes. Mais de um terço desses funcionários receberam treinamento e assistência para encontrar emprego no setor privado (outros se aposentaram ou preencheram vagas em outras partes do governo). Muitos desses ex-servidores públicos agora prestam serviços para o governo — a custos mais baixos — como fornecedores particulares (ver "De carimbador de papel a dono de empresa", à direita). No conjunto, a revisão está poupando aos contribuintes uruguaios US$56 milhões por ano, dos quais US$25 milhões estão indo para o tesouro nacional, sendo a maior parte restituída aos órgãos reestruturados para incentivar os programas acima descritos.

Como fato curioso, o processo inteiro de reestruturação ocorreu em menos de três anos e sem uma única greve ou protesto trabalhista. Um dos motivos fundamentais, segundo o chefe da CEPRE, Eduardo Cobas, foi o programa ter sido apoiado pelos próprios chefes dos órgãos, aos quais nunca antes se tinha dado escolha sobre o uso de recursos para contratar ou recompensar suas equipes. “Eles viram aquilo como uma oportunidade”, lembra Cobas. Os chefes podiam recrutar as pessoas altamente qualificadas de que tinham precisado durante anos, ou simplesmente conceder aumentos a participantes da equipe que corriam o risco de perder para o setor privado. O resultado foram equipes mais enxutas, mais motivadas e de melhor qualificação, produzindo economia líquida para o governo.

Outra razão para o sucesso foi o fato de os aspectos financeiros do plano de reforma estarem embutidos no orçamento nacional aprovado no primeiro ano da administração Sanguinetti. Segundo Cobas, isso deu ao programa credibilidade política imediata e assegurou que o restante do tempo do governo no poder pudesse ser dedicado à execução das reformas, e não a brigas por dinheiro.

Atualmente, o Uruguai está entrando na segunda fase da reforma, que ressalta o desempenho dos serviços públicos. A partir do orçamento federal que será aprovado mais tarde este ano, solicitou-se a todos os órgãos públicos que definissem seus produtos e serviços e que expusessem seus indicadores e objetivos específicos. “Queremos mudar a maneira pela qual formulamos e elaboramos o orçamento nacional”, diz Cobas. “Queremos poder distinguir entre os serviços que estão fazendo as coisas corretamente e os que não estão, para distribuir os recursos públicos segundo esse critério.”

Por solicitação do governo uruguaio, o BID está preparando um novo empréstimo para ajudar a financiar a continuidade do programa de modernização. Além das atividades descritas por Cobas, o novo programa financiará a desregulamentação visando melhorar o ambiente dos negócios, um novo sistema de compras do governo com base na Internet e a criação dos centros de serviço ao cliente ou “postos de atendimento geral”, nos quais os cidadãos possam realizar diversas transações oficiais.

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